Desde o anúncio da mudança na política de checagem de notícias do Grupo META, que controla o Facebook e Instagram, realizado por Mark Zuckerberg, que a gritaria tomou conta das redes e dos principais meios de comunicação. O incômodo tem sido tamanho em terras brasileiras, que membros do executivo federal, do legislativo e do judiciário tem se manifestado de forma efusiva. O próprio Ministério Público Federal se mobilizou, solicitando respostas ao Grupo Meta sobre a mudança em sua política, somando-se aos gritos inconformados de Ministros de Estado, membros do Supremo e dos barões detentores dos meios tradicionais de comunicação, como Globo e afins. Mas o que está por trás de tamanha indignação? Estariam realmente o Grupo Globo e membros da elite dirigente nacional muito preocupados com a qualidade das informações que circulam nas redes?
Antes de mais nada, é preciso entender a origem da contenda. Zuckerberg, o multimilionário dono do Facebook, Instagram e Threads, anunciou que as informações vinculadas em suas plataformas, deixarão de ser checadas por agências profissionais de checagem, sendo a verificação relativa à veracidade ou à qualidade do conteúdo substituída por “notas da comunidade”, um sistema onde os próprios usuários da plataforma comentam sobre o conteúdo, podendo trazer links ou informações complementares, que são votadas por demais usuários para avaliar a veracidade ou o índice de qualidade das informações. Segundo Zuckerberg, a validação das informações por agências de checagem estava trazendo grande parcialidade às notícias vinculadas, o que, segundo o empresário, vinha gerando grande desconfiança dos usuários quanto ao ambiente de “liberdade de expressão” nas plataformas. O dono da Meta afirma ainda, em sua defesa, que o sistema que vigorava de checagem, até o presente momento, vinha banindo conteúdos opinativos com muita frequência, gerando uma espécie de censura nas redes. Para o empresário, o método de noras da comunidade permitirá maior participação dos usuários na validação de conteúdos e impedirá o banimento de muitas informações que não constituiriam, segundo o empresário, conteúdo sensível ou fantasioso.
Em contraposição à decisão da Meta, veículos de comunicação tradicionais, jornalistas e especialistas em comunicação, afirmam que a decisão da Zuckerberg trará insegurança às redes, afirmando que a metodologia de notas da comunidade será insuficiente para barras conteúdo ofensivo ou impróprio. Eles alegam ainda que essa metodologia, já utilizada de forma similar na plataforma X, de Elon Musk, permitiu que o ambiente digital da mesma se tornasse mais tóxico e permeado por manifestações de intolerância, além de promoção de notícias falsas. Os contrários à decisão da Meta afirmam ainda que a retirada das agências de checagem do papel de verificadoras dos conteúdos representará um retrocesso nos processos de qualificação das informações, possibilitando a manifestação de opiniões de ódio ou de tendências ilegais nas redes que constituem o grupo Meta.
Nessa briga toda, quem tem razão? Entre as “big techs”, com toda sua sede por lucro e suas intenções ocultas, baseadas nos interesses de grupos de poder, e os tradicionais cartéis de comunicação, também recheados de interesses e controlados por famílias e parcelas do mercado financeiro, em quem acreditar? Com quem ficamos nessa hora delicada, onde o que está em disputa é fonte daquilo que consumimos?
Bom, responder essa pergunta não é fácil, e será preciso uma reflexão profunda e despida de passionalidades, o que não é fácil nos dias de hoje, onde nossos instintos, desejos e opiniões foram cuidadosamente moldados por esses grupos de poder que, nesse momento, disputam justamente a hegemonia do protagonismo na formação da opinião pública.
Milton Santos, o brilhante geógrafo brasileiro que nos presenteou com obras memoráveis, em seu livro “A Natureza do Espaço: técnica e tempo, razão e emoção”, já apontava a amplitude do poder que as empresas de tecnologia teriam sobre a vida social, mesmo antes delas terem o poder que possuem hoje, uma vez que seu texto data de 1996. Em sua obra, Milton aponta para o poder que as corporações detentoras dos meios tecnológicos teriam sobre a formação da sociedade através do controle dos fluxos comunicacionais. Nesse sentido, evidencia o geógrafo que tais corporações e seus detentores não seriam desprovidos de interesses, sendo esse ambiente virtual impregnado por ideologias e demandas típicas do processo de acumulação do capital. A avaliação feita por Milton em meados da década de 90 é absolutamente precisa quanto ao que se transformaram as empresas que dominaram a internet. O fluxo de informações que circulam por meio dos algoritmos, que determinam quem, como, quando e o que será apresentado, moldaram e seguem moldando o comportamento, a opinião, os prazeres, tesões, a formação política e principalmente as dinâmicas de consumo das sociedades contemporâneas. No mesmo ano de 96, Pierre Bourdieu, um dos maiores sociólogos do Século XX, lançou seu texto “Sobre a Televisão". A leitura ainda atual e de profundidade ímpar, aponta como a televisão era (e continua a ser) uma ferramenta de construção de valores, formação de desejos e criação de conceitos meticulosamente organizados. Bourdieu aponta de forma muito precisa, inclusive, as formas utilizadas pelos grandes conglomerados de comunicação para manipular a massa, trazendo sempre o argumento de “autoridade” de ditos “especialistas” para confirmar pontos de vista previamente compactuados por determinado grupo de interesse. Os textos de Santos e de Bourdieu se assemelham e tratam do mesmo tema: o monopólio da informação como ferramenta de dominação.
Avaliando o contexto atual, à luz da genialidade de Milton Santos e Pierre Boudieu, fica evidente que o que está se desenrolando agora, na disputa entre Meta, corporações de várias nações e conglomerados tradicionais de comunicação, não passa de uma disputa pelo controle hegemônico da formulação das opiniões das sociedades. Não há aqui santinho ou indivíduos realmente interessados na difusão de informações produtoras de liberdade e autonomia. Há, em última análise, uma guerra sem precedentes pelo controle das nossas consciências.
Nesse ponto do texto, é importante que façamos uma pequena digressão, retornando ao ano de 2013 no Brasil. Mas antes, para contextualizar, precisamos apontar que o mundo passava, naquele momento, por turbulências advindas de um conjunto de revoltas. No Oriente Médio, a dita “Primavera Árabe” depôs vários regimes tradicionais, substituindo-os por frações radicais do Islã ou afundando países em guerras civis que perduram até hoje. O leste europeu foi também abalado, sendo a Ucrânia o exemplo máximo do poder destrutivo das “revoluções coloridas”, com a deposição de um Presidente sob acusações intensas de corrupção e início de vários governos fantoches, pró-ocidente, que culminaram em Zelensky e no conflito que observamos hoje. Já falei em outros artigos anteriores sobre Guerra Híbrida, a ferramenta de combate utilizada para desestabilizar nações e que foi colocada em prática nesse período para obtenção desses resultados descritos acima. Nesse contexto, o Brasil não ficou de fora. Tivemos aqui as manifestações de junho de 2013 e muitas outras que ali começaram e que, definitivamente, deram início a uma queda de popularidade de uma presidenta eleita que jamais se recuperaria, levando à sua deposição anos depois, em 2016, após um processo de impeachment meticulosamente orquestrado.
No período que antecedeu as manifestações de julho de 2013 e nos anos que se seguiram, passando pelo impeachment de Dilma e a eleição de Bolsonaro, em 2018, o que vimos foi uma intensa guerra de informações e de notícias falsas, mas que não começaram nas redes sociais (ainda não eram tão expressivas em 2013 como são hoje). A onda de desestabilização começou justamente nos meios de comunicação tradicionais e de massas. Sim, queridos amigos menos atentos, quem não lembra das capas da Revista Veja colocando Dilma como desequilibrada ou das manchetes do Jornal Nacional associando a presidenta à corrupção, sempre com sua foto aparecendo sobreposta a um cano de esgoto de onde jorravam notas de dinheiro? A massificação de informações meticulosamente engendradas, criou o cenário perfeito para manifestações, investigações como a Lava-Jato, e por aí vai. Tudo isso nasceu da articulação entre os magnatas dos meios tradicionais de comunicação e os interesses internacionais, descontentes naquele momento com uma presidenta que possuía características nacionalistas e desagradava vastos interesses, principalmente quando segurou com coragem os preços dos combustíveis. No rastro de toda campanha midiática contra o governo de situação à época, as redes sociais foram crescendo, se consolidando e começaram a ser disputadas, seja pelos meios de comunicação tradicional, seja por grupos ou segmentos organizados da política que visavam também o controle da informação. Ocorre que, entre 2016 (impeachment de Dilma) e 2018 (eleição de Bolsonaro), as elites dirigentes (aquelas descritas por Romero Jucá na frase épica “Com Supremo e com tudo”), acreditavam ter afastado o grupo político que não interessava e julgavam que em 2018, Alckmin levaria a eleição, repactuando acordos e pondo as coisas nos seus “devidos lugares”. Desavisados, os barões das comunicações não perceberam que um outro grupo de pessoas havia resolvido entrar na brincadeira, disposto a embaralhar o jogo e se constituir como uma nova força política no cenário nacional: os militares de ultra-direita. Se valendo dos manuais de Guerra Psicológica publicados pela própria instituição militar e da consultoria de “magos da ultra-direita internacional”, como Steve Bannon, esse grupo passou a jogar pesado nas redes sociais, difundindo notícias falsas, factóides e toda sorte de bizarrice, criando um clima de profunda insatisfação com a política, capitalizado estrategicamente pelo candidato desse grupo, Jair Bolsonaro, que surpreendeu também aos donos da banca com sua eleição.
Bom, não cabe aqui contar a história da democracia brasileira nos últimos vinte anos, contudo, é necessário explicitar ao leitor que, para que as fake news tivessem sucesso, foi necessário um ambiente fértil. Esse ambiente foi criado pelos meios tradicionais de comunicação que, nesse momento, buscam retornar a hegemonia do controle das opiniões.
Após um governo marcado por nítidos desatinos e também posterior aos evidentes constructos bizarros utilizados nas redes, as elites brasileiras, para sermos mais específicos, reconstruíram um pacto de poder onde, de forma central, se encontra a informação como elemento chave para assegurar uma estabilidade política e a manutenção dos interesses vigentes. Nesse sentido, os grandes órgãos de comunicação pactuaram a criação de “agências de checagem”, compostas por “especialistas’, pessoas dotadas de determinado conhecimento técnico capaz de julgar a veracidade das informações vinculadas nas redes. Nesse momento, retornamos a Bourdieu, e rapidamente identificamos a construção de uma nova faceta de filtragem da informação, tão nociva quanto os algoritmos inescrupulosos que replicam barbaridades. Aos leitores menos atentos, basta informar, por exemplo, que a plataforma Fato ou Fake pertence ao grupo Globo, que a Agência Lupa conecta-se ao grupo Folha ou que o Projeto Comprova tem sua conexão ao Estadão.
Observando todo contexto apontando nessas extensas linhas, compartilho com você, que teve a coragem e paciência de chegar até aqui, minha singela opinião: eles só estão disputando o controle dos meios através dos quais formarão a sua opinião, caro leitor.
Nós, como sociedade, ao abrirmos mão do investimento pesado em educação de base, focada na formação de sujeitos plenamente conscientes e munidos de instrumentos indispensáveis à construção da autonomia e do saber, jogamos fora o melhor instrumento de combate à desinformação, às fake News ou a propagação de ódios e intolerância. Um povo bem formado, educado e beneficiado pelo conhecimento, como preconizado por Anísio Teixeira ou Darcy Ribeiro, é o melhor filtro contra a ignorância, dispensando “agências de checagem” e imune aos delírios dos algoritmos.